História do Bolo-Rei, brindes e favas
do livro Cozinha Tradicional Portuguesa
da Editoral Verbo
História do Bolo-Rei, brindes e favas
"De onde vem este bolo que tem nome de rei e é hoje conhecido em
todo o país, tendo-se tornado (quase) obrigatório em todas as
mesas, entre o Natal e o dia de Reis?
Diga-se desde já que, apesar da popularidade de que goza entre
nós, o bolo-rei tem origem francesa e para explicar tanto a fava
como o brinde, teremos de recuar bastante no tempo, mas já lá
vamos à história, que até tem pormenores bem interessantes.
Tanto quanto se sabe, a primeira casa onde se vendeu em Lisboa o
bolo-rei foi a Confeitaria Nacional, certamente depois de 1869,
como a seguir se verá.
A confeitaria foi fundada em 1829 por Baltasar Rodrigues
Castanheiro e, quando abriu, tinha apenas duas portas para a rua
da Betesga, que liga o Rossio à Praça da Figueira.
Alguns anos depois, foram feitas obras de ampliação e a casa ficou
com quatro portas para a referida Rua da Betesga e outras quatro
para a rua dos Correeiros.
Baltasar Rodrigues Castanheiro esteve à testa da casa durante
quarenta anos. Quando morreu, em 1869, sucedeu-lhe seu filho,
Baltasar Rodrigues Castanheiro Júnior, que logo nesse ano fez
importantes melhoramentos, designadamente um elegante salão de chá
no primeiro andar.
Deve-se-lhe também a introdução do bolo-rei, feito segundo uma
receita que trouxe de paris.
Em Lisboa de Lés a Lés (vol. II, pág.140), Luís Pastor de Macedo
recorda que no Dia de Reis, a Nacional fazia um "negócio de
mão-cheia", o que se explica em poucas palavras: «É que ela fora a
primeira onde o afamado bolo-rei se vendeu em Lisboa, bolo sempre
ali feito por uma receita que Baltasar Castanheiro Júnior trouxera
de Paris.»
O bolo era feito por um mestre confeiteiro, o Gregório, que também
veio de Paris.
Por essa altura, durante a quadra natalícia, a Confeitaria
Nacional oferecia aos Lisboetas «uma exposição de doces, de
grandes construções de açúcar e amêndoa, de bolos de ovos de entre
os quais se destacava uma afinidade de estonteantes e bojudas
lampreias, de prodigiosas fantasias enconfeitadas e de tudo quanto
de mais delicado e original a arte dos doces podia então
produzir».
a pouco e pouco, a receita do bolo-rei generalizou-se.
Outras confeitarias de Lisboa passaram a fabricá-lo, o que deu
origem a versões diversas, que de comum tinham apenas a fava.
No Porto, foi posto à venda pela primeira vez em 1890, por
iniciativa da Confeitaria de Cascais, na Rua de Santo António/Rua
31 de Janeiro. Diz-se que este bolo-rei foi feito segundo receita
que o proprietário daquela confeitaria, Francisco Júlio Cascais,
trouxera de Paris.
Inicialmente, só era fabricado na véspera do Dia de Reis, mas a
partir de 1920, a Confeitaria de cascais passou a ter bolo-rei
quase todos os dias.
Na altura, já muitas confeitarias de Lisboa o vendiam.
A propósito, José Leite de Vasconcelos recorda este anúncio
publicado no Diário de Notícias, em 10 de Janeiro de 1910: «Bolo-Rei-
Vem de longa data a justa fama do delicioso Bolo-Rei da
Confeitaria Primorosa, da R. de S.Paulo, 130 e 132, na verdade é
um dos melhores que se fabricam em Lisboa.
Por isso têm sido numerosas as formadas, que se prolongam ainda
por toda esta semana, visto ter uma extracção rápida essa tão fina
especialidade.»
De bolo-rei a bolo Arriaga
Temos assim que o bolo-rei atravessou com êxito os reinados da
Rainha D. Maria II e dos reis D. Pedro, D.Luís, D.Carlos e D.
Manuel II.
Com a República, houve alguns problemas que depressa foram
ultrapassados.
Vieram depois sem novidade o Estado Novo de Salazar e Marcelo
Caetano e a Revolução de 25 de Abril de 1974.
Em boa verdade, os piores tempos para o bolo-rei foram os que se
seguiram à proclamação da República, em 5 de Outubro de 1910.
Meses depois, em 7 de Janeiro de 1911, o Diário de Notícias não
fazia as coisas por menos: «O bolo-rei tende a decair ou
desaparecer-Terá de ser substituído?»
Poderá parecer estranho, mas a proclamação da República pôs em
risco e existência do bolo-rei, na altura já considerado
tradicional.
Tudo por causa da palavra rei, «símbolo do poder supremo», dizia o
Diário de Notícias, que numa lógica que hoje nos faz sorrir,
acrescentava na sua notícia-comentário: «Ora, morto este símbolo,
o bolo tinha de desaparecer ou tomar o expediente de se mascarar
para evitar a guerra que lhe podia ser feita.»
Em face disto, que fizeram os industriais de confeitaria? Partindo
do princípio de que o negócio é negócio e política é política,
seguiram naturalmente a segunda via, ou seja, continuaram a
fabricar o bolo-rei, mas sob outra designação.
Os menos imaginativos passaram a anunciar um bolo que dava pelo
nome de ex-bolo-rei, mas a maioria preferiu chamar-lhe bolo de
Natal e bolo de Ano Novo.
A designação de bolo nacional era talvez a melhor, uma vez que
remetia para a confeitaria que introduziu o bolo-rei em Portugal e
também para uma certa ideia relacionada com Portugal, o que fica
sempre bem em períodos revolucionários.
Não contentes com nenhuma destas soluções os republicanos mais
radicais chamaram-lhe bolo Presidente e até houve quem
anunciasse...
bolo Arriaga! Não se sabe como reagiu o primeiro presidente da
República, Manuel de Arriaga, mas convenhamos que a homenagem dos
confeiteiros não foi a melhor.
O brinde e a fava
Já se disse que a receita do bolo-rei veio de Paris.
Isto parece hoje fora de dúvida, apesar das reticências de José
Leite de Vasconcelos: O bolo-rei ou bolo das favas é de provável
origem francesa.»
Acrescenta-se agora que o bolo-rei popularizado em Portugal no
século passado não tem nada a ver com a «galette de rois» que era
o bolo simbólico da Festa dos Reis na maior parte das províncias
francesas a norte do rio Loire, nomeadamente na região de Paris,
onde o bolo é uma rodela de massa folhada, recheada ou não de
creme.
O «nosso» bolo-rei segue a receita utilizada a sul do Loire, um
bolo em forma de coroa, feito de massa levedada (massa de pão).
Acrescenta-se, de qualquer modo, que ambos os bolos continham uma
fava simbólica, que nem sempre era uma verdadeira fava, podendo
ser um pequeno objecto de porcelana.
Referindo-se ao bolo-rei, leite de Vasconcelos acrescenta que ele
tinha dentro uma moeda ou uma fava.
a moeda relacionava-se com o culto dos mortos.
Quanto à fava, já no século XVI, na Alsácia, se punha a hipótese
de ela aludir ao banquete dos mortos, do mesmo modo que a moeda
«dava» ao morto a possibilidade de comprar o direito de regressar.
Que se saiba nunca nenhum fez uso dessa possibilidade...
Feitas as contas e dando um salto no tempo, temos hoje que o
bolo-rei inclui um brinde e uma fava.
O brinde é um pequeno objecto metálico sem outro valor que não
seja o de símbolo, e mesmo assim pouco evidente para a maioria das
pessoas.
A fava representa uma espécie de azar: quem ficar com ela tem que
comprar outro bolo-rei.
Gâteau des Rois
Os romanos costumavam votar com favas, prática introduzida nos
banquetes das Saturnais, durante as quais se procedia à eleição do
Rei da Festa, também chamado Rei da fava.
Diz-se que este costume teve origem num inocente jogo de crianças,
muito frequente durante aquelas festas e que consistia em escolher
o rei, tirando-o à sorte com favas.
O jogo acabou por ser adaptado pelos adultos, que passaram a
utilizar as favas para votar nas assembleias.
Como aquele jogo infantil era característico do mês de Dezembro, a
Igreja Católica passou a relacioná-lo com a Natividade e ,depois,
com a Epifania, ou seja, com os dias 25 de Dezembro e 6 de
Janeiro.
A influência da Igreja na Idade Média determinou a criação do Dia
de Reis, simbolizado por uma fava introduzida num bolo, cuja
receita se desconhece.
De qualquer modo, a festa de Reis começou muito cedo a ser
celebrada na corte dos reis de França.
O bolo-rei teria surgido no tempo de Luís XIV para as festas do
Ano Novo e do dia de Reis.
Referem-se-lhe vários escritores, e Greuze celebrou-o num quadro,
exactamente com o nome de Gâteau des Rois.
Com a Revolução Francesa (1789), este bolo foi proibido.
Só que os confeiteiros tinham ali um bom negócio, e em vez de o
eliminarem, passaram a chamar-lhe Gâteau des sans-cullottes.
Em Portugal, depois da proclamação da República, não chegou a ser
proibido, mas andou lá perto.
Com excepção desse mau período, a história do bolo-rei é uma
história de sucesso, e hoje como ontem as confeitarias e
pastelarias não se poupam a esforços na sua promoção."
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