A
associação CONFRARIA NABOS E COMPANHIA de
Carapelhos é a única Confraria Gastronómica oriunda de
uma aldeia.
Para isso nasceu. Para autenticar a ruralidade, para
homenagear e divulgar cada vez mais a genuinidade das
suas gentes e dos seus grelos de nabo – alimento rico de
aromas e sabores que, versátil, valoriza a gastronomia
Gandaresa.
E fá-lo desde o ano 2000.
Porém, esta terra, sendo mãe, (e é conhecida a nossa
afeição à terra - mãe que nos embalou a infância) é
simultaneamente madrasta porque, para além do berço
modesto, com pouco mais nos mimou: herdámos-lhe um chão
areento, quase estéril, que não enche cristãmente a boca
a todos e obrigou a sangria grande de homens. Os que,
mais apegados ao torrão natal, não ousaram tornar-se
andarilhos entregaram-se a uma agricultura de
subsistência cuja adiafa acontecia em Outubro. Mas
incomodava-nos aquele sossego de Outono que se estendia
até Janeiro. Dominando mal o impulso que nos impele a
amanhar a terra para fecundá-la e garantir o sustento
até ao ano novo, ensaiámos os grelos de nabo que,
resistentes ao frio e apreciadores da humidade de
Inverno, se adaptaram. O resto da história é conhecido.
Hoje partem daqui camiões para os mercados europeus. Da
saudade ou não. E das 151 famílias que habitam a terra
em permanência, apenas 15 não vivem do cultivo dos
grelos de nabo, o que nos esclarece àcerca do peso desta
actividade na economia local.
Reflexos desta actividade que, à míngua de registos, se
perdem no tempo, encontram-se até no culto religioso: a
festa da Senhora da Conceição, padroeira desta terra que
se celebra no dia 8 de Dezembro, também sempre foi
conhecida por festa das cabeças. De nabo, obviamente.
Até o ritual de entronização, em que o novel confrade
bebe pela cabeça do nabo, testemunha a tradição dos
tempos em que, pela festa, se talhava na cabeça do nabo,
o copo por onde escorria o vinho.
A confraria pretende dar continuidade ao espírito
agremiador propiciado pelas pequenas comunidades. Somos
autênticos nabos, nascidos e criados na região da
Gândara que, em bloco, aderimos às múltiplas iniciativas
protagonizadas pela Confraria. A começar por aquela para
a qual, enquanto gastrónomos, estamos vocacionados:
comer. Os nossos encontros regulares são realizados numa
autêntica e tradicional casa da região – a casa
Gandaresa – onde cada confrade é submetido ao teste da
cozinha e carece da aprovação de todos os outros.
A nossa Gastronomia Tradicional Gandaresa não se confina
aos produtos da terra. Àquilo que lhe arrancamos
juntamos a dádiva do mar e da Ria. Se somos a aldeia
mais afastada do nosso concelho de Mira a que foi
concedida a bênção de espraiar as suas magníficas matas
verdes por largos quilómetros de Atlântico e inúmeros
canais de água doce, tivemos o privilégio de encostar a
um distrito que empresta o nome a um vasto lençol de
água: a Ria de Aveiro. E a míngua de pão empurrou-nos
cedo para lá. Fosse ao leme de um moliceiro na apanha
dessa alga capaz de fertilizar o sustento; fosse, feitos
marinheiros descobridores do século XX na proa de um
bacalhoeiro em demanda do fiel amigo na solidão fria dos
mares gelados; fosse nas marinhas, vergados ao peso da
cesta de sal que haveria de conservar o bacalhau que
estava logo ali ao lado, nas secas; fosse ainda, água
pelo pescoço, ao calcão à cata das enguias. Mas as
sardinhas na telha, o pitáu de raia, as batatas assadas
na areia com carapau e grelos, os berbigões abertos na
brasa eram (e são) lenitivo para tantas canseiras. Para
não falar das enguias. Das de caldeirada às suadas e às
de escabeche. E do bacalhau. Das caras aos buchos e às
línguas.
Dentro do espírito de ver reconhecida a genuinidade dos
grelos de nabos e a actividade que ocupa cerca de 80% da
população da aldeia, promovemos a criação da ASSOCIAÇÃO
DE PRODUTORES DE GRELOS DOS CARAPELHOS. O esteio da
certificação, esperamos, de um produto que se alargou à
região. Para isso promovemos, em parceria com a Câmara
Municipal de Mira e outras entidades, a FEIRA DOS GRELOS
DA REGIÃO DA GÃNDARA que se realiza em Janeiro. Neste
contexto de divulgar e levar longe o nome da terra e do
Concelho e, por que não dizê-lo, aprender, temo-nos
feito representar em grande número de eventos e marcado
presença regular nos meios de comunicação social,
nomeadamente na televisão. Mas não ficam por aqui as
nossas actividades. Outras se destacam:
- Abertura da Feira Gastronómica de Santarém.
- Lançamento do livro «Contos da Confraria».
- Geminação com a «Cofradía Amigos de los Nabos» das
Astúrias.
- Participação, a nível mundial, no concurso Slow-food.
- Embaixada à América para promoção dos grelos e da
região
- Criação de DVD sobre o concelho de Mira.
- Plantação de uma vinha.
Mas estes homens não esquecem as raízes. Usamos, como
traje, o gabão dos nossos avós com uma insígnia onde um
barco se funde com uma carroça encimada por um nabo. São
símbolos óbvios de gente que, «um pé na terra outro na
água», labuta árdua e diariamente pela côdea.
Por isso deu já entrada na Câmara Municipal o projecto
de um monumento, da autoria do arquitecto Carlos Mendes,
que irá ser implantado no largo da fachada da Casa
Gandaresa, que celebra os grelos de nabo e as suas
laboriosas gentes.
VII Grande Capítulo -
2008
Nós, Nabos e Companhia, celebramos hoje o nosso VII
CAPÍTULO. Festa maior de uma confraria cuja significação
radica nas assembleias gerais periódicas de uma
congregação religiosa onde, no início dos encontros, se
procedia à leitura de um capítulo da REGRA MONÁSTICA,
conjunto de preceitos destinado a guiar a conduta das
comunidades monásticas de que há rasto nos nossos
actuais Regulamentos Internos. Da ancestralidade e do
contexto onde ocorria o capítulo, emana, pois, ainda
hoje, ao ser actualizado neste ritual festivo, uma certa
aura de religiosidade.
Porém, se enquanto confraria é relevante que recuperemos
esta solene cerimónia monastical, que legitimidade terá
uma Confraria Gastronómica para se reclamar herdeira de
tão austeros e frugais cerimoniais?
Parece haver uma certa incompatibilidade entre o
substantivo confraria e o adjectivo gastronómica que a
caracteriza. O conceito de confraria possui algo de
esotérico e conquistou já o inconsciente colectivo com
foros de sacralidade: é a fraternidade que comporta a
ideia de disponibilidade para o outro e através da qual
se há-de ascender ao absoluto, enquanto o termo
gastronómica, que particulariza a ideia de irmandade,
remete para o corpóreo, para a prosaica tarefa do
aparelho gástrico. É o conceito, aparentemente
antagónico, da espiritualidade de um D. Quixote a
vergar-se ao materialismo de um Sancho Pança.
Esgaravatando, há-de pôr-se a descoberto a raiz grega do
adjectivo gastronómica cuja etimologia encaminha para a
vileza de ingerir e processar alimento, seja para
humanos ou para animais. Fazê-lo era, instintivamente,
garantir a sobrevivência mas, progressivamente,
desfrutar dos prazeres proporcionados pela comida e era,
continuando a herança dos imemoriais tempos pagãos,
poder manifestar a alegria de estar vivo; era, num mundo
politeísta e dedicado ao culto naturalista, celebrar
agradecidamente as Divindades da Fartura; era festejar a
Natureza. Foi converter o simbolismo litúrgico do trigo
e do vinho dos mistérios Eleusinianos no ritual cristão
da Última Ceia. É a coabitação do profano e do sagrado.
Neste contexto, o acto primordial que assegura a
continuidade da espécie começou a estar para além das
necessidades vitais. A abundância trouxe o desejo da
novidade, da experimentação, do exotismo. Cada vez mais
elaborada, a comida foi-se requintando e a evolução
semântica do étimo gastro ganhou estatuto que, pela sua
abrangência, a eleva acima do conceito de culinária: é o
culto epicurista da mesa
Enquanto o refinamento dos alimentos vai ganhando peso
definha a noção de desavença entre matéria e espírito e
ganha consistência a ideia do ser humano enquanto um
todo indissociável, de corpo e alma. Nesta perspectiva,
o acto de comer não é um acto desgarrado da envolvente
cultural e social. Fazê-lo é preservar o património e os
valores imateriais da gastronomia tradicional.
O Gandarês lançou mão da dádiva do mar que lhe ronda a
porta e dos escassos produtos de um chão areento. Foi
desta união do Atlântico com a areia maninha que a
cozinha desta região encontrou a sua expressão mais
genuína; daqui lhe arrancou manjares que nos confortam o
espírito e o estômago e são esses saberes ancestrais que
evocam em nós uma infinidade de vivências e sensações. O
culto pelos prazeres da mesa regional motivou-nos a
fundar uma associação que homenageia a genuinidade de
sabores e saberes daquilo que por cá ainda se saboreia.
Conscientes de que quando um punhado de NABOS se senta à
mesa é a Gândara toda que para aí é convocada,
reconcilia-se o conceito antinómico dos elementos
constituintes de confraria gastronómica pois há algo de
abençoado e litúrgico em preservar e divulgar a partilha
saudável e festiva dos paladares gandareses. Há oito
anos que vimos construindo essa mesa com alma.
Justificada a dignidade de um capítulo gastronómico, e
porque neste contexto também cabe celebrar a mitologia
das colheitas, a nossa escolha para a cerimónia de
insigniação dos novos confrades não recai no convento
(que não temos) mas num campo de grelos de nabo,
alimento rico de aromas, sabores, vitamina c e ácido
fólico que optimiza a nossa gastronomia. Espaço pouco
acolhedor mas que, para além de arejar o modelo
instituído, permite sentir, testemunhar e apreciar o
trabalho artesanal da apanha deste vegetal que também
tem projectado o nome deste concelho.
Silvério Manata
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